A noite lisboeta mais longa do ano começou horas antes (dias, semanas, meses, na verdade) com a azáfama dos moradores que trabalham para emprestar os seus bairros à cidade e a quem a visita. Desde que tem memória, Susana Abrantes trabalha nas festas de Santo António do bairro da Madragoa, onde nasceu e cresceu. “Para mim, esta é a melhor festa do ano, é este o bairrismo que eu espero que nunca se perca em Lisboa” diz, vestindo uma camisa encomendada pelos moradores do bairro para distinguir quem está a trabalhar de quem aparece para conviver.
Ainda à luz do dia, já se sentia a festa nas ruas estreitas da Madragoa. Com o cheiro da sardinha no ar, a música a todo o volume e o carvão a crepitar dentro dos fogareiros, não há mesa vazia nem pessoa sem um copo ou um prato na mão por muito tempo, incluindo as que ficaram apenas nas suas varandas. Olhando em redor, Susana deseja que a tradição se mantenha “viva por anos”.
“É por isso que estou a passar a tradição para os meus filhos e para os meus netos. Participei nas marchas na Avenida [da Liberdade] nos anos 90 e agora é a vez deles. Para mim, Santo António é na Madragoa. Sempre Madragoa”, conta. Este ano, o tema central das Marchas Populares de Lisboa é o rio Tejo.
Todo o bairro juntou-se para organizar a festa. Comerciantes e moradores reúnem-se com antecedência para planear o arraial e para que tudo “corra bem”, explica Susana: contrata-se um grupo musical para cada noite (ainda que os clássicos de Quim Barreiros continuam a dominar a banda sonora das festas) e os preços da comida e das bebidas são acordados entre todos para não haver conflitos.
“Este ano, aumentamos um pouco os preços na carne. Há dois anos tivemos de aumentar porque tudo disparou, mas nada fora do comum. No fundo, temos de fazer preços de arraial, não de cafés nem de restaurantes. No arraial, há uma logística muito grande e temos de fazer dinheiro, ter algum lucro”, explica.
As vendas não param. Há bancas ao longo da rua, mas também há quem abra as portas e venda comida a partir da sua própria casa. A cada passo na noite na Madragoa, ziguezagueia-se entre pessoas com tabuleiros cheios de comida: chouriço assado, caracóis, caldo verde, bifanas, cerveja, sardinhas e tudo o que o Santo António não dispensa, em doses generosas.
“Todos nos organizamos para que a festa cresça todos os anos. Há muitos turistas a aderir, devido aos alojamentos locais. Eles também adoram isto, o conceito da festa típica, da salada, da sardinha, da sopa e a bifana no pão”, diz Susana.
Mesmo que cada vez mais participada por quem vem de fora, a festa continua a ser “muita portuguesa, muito do bairro”, opina Rita Fernandes, também moradora da Madragoa. Tem 41 anos e escolhe celebrar o Santo António no seu bairro, e não noutras festas que se multiplicam Lisboa fora, porque aqui é “mais fácil para vir com os mais pequeninos”.
“É menos confuso, sente-se mais ‘bairro’, muitas das pessoas que estão cá moram na Madragoa. Os meus filhos estudam aqui e acabam por encontrar os amigos da escola. Por aí, há amigas da minha filha que vão participar na marcha mais tarde, então fazemos questão de ficar cá para ver o grupo sair para a Avenida da Liberdade”, conta.
Em Carnide “não há turistas, o que é muito bom”
Com copos de cerveja na mão, ou à mesa com a sardinha no pão, há quem admita tentar fugir das festas mais procuradas pelos turistas e procura a tradição: em Carnide, noutro ponto de Lisboa, a festa é portuguesa.
Maria Silva tem 40 anos e soma mais um no arraial. Passa o Santo António em Carnide desde pequena. “Não venho só porque é perto da minha casa, estou aqui porque é bom, a música é boa, a comida é boa e tenho tudo o que eu preciso numa noite do Santo António. Aqui não há turistas, o que também é muito bom”, sorri.
O Largo do Coreto, longe do centro de Lisboa, enche-se de música em vivo, luzes e bancas com uma ampla variedade de comida. O espaço, ainda que vasto, enche-se de pessoas e obriga à paciência ao caminhar. Conceição Bernardino vem com o marido ao arraial de Carnide há 20 anos e diz que o prefere aos outros porque “costuma ser muito tranquilo”, ainda que não tanto como antigamente.
“Isto é um bairro, não há muitos turistas e claro que prefiro assim, porque, a partida, é mais calmo. Mas noutros anos o arraial já foi muito mais tranquilo”, opina.
Como também já foi mais barato. “Dois euros por uma cerveja é inconcebível. Antes, custava um euro. A sardinha também. Tudo era mais barato”, lamenta.
Conceição costumava ir ao desfile das Marchas Populares na Avenida da Liberdade com o marido, o que agora considera “impossível com aquela confusão De jeito nenhum centro”.
“Há uns anos estava bem organizado, mas agora há muita gente. Nós fugimos da Baixa porque agora há muitos turistas e aquilo já não nos diz nada. As pessoas sabiam que aqui era mais calmo, começam a fugir para aqui, e agora começa a ficar cheio”, nota.
Seja no centro de Lisboa, nos bairros históricos ou nos núcleos mais periféricos, haverá um arraial para cada gosto nesta noite de Santo António. O que se mantém é a vontade de festejar até de manhã, entre petiscos, bebidas e música “pimba”.
Texto editado por Pedro Guerreiro