Fintando o bloqueio de Israel à entrada não acompanhada ou vigiada de órgãos de comunicação social estrangeiros na Faixa de Gaza, o fotógrafo britânico Tom Lewendon entrou no território ocupado como voluntário da organização humanitária MedGlobal. O que trouxe para o exterior, para o mundo, sem qualquer filtro, foram as fotografias e as histórias dos palestinianos com quem se cruzou num cenário de devastação material e humana.
Lewendon passou parte dos meses de Março e Abril de 2024 no Hospital Shuhada al-Aqsa, no centro da Faixa de Gaza, e no Hospital Europeu, mais a sul, perto de Khan Younis. “Juntei-me à equipa de médicos voluntários e documentei o que estavam a fazer”, contou ao P3, numa videochamada a partir de Berlim, onde vive. “A MedGlobal tem várias missões médicas. Tem um hospital de campanha, trabalha no interior dos hospitais de Gaza e tinha, para além disso, um centro de malnutrição que agora está encerrado, devido à incursão israelita em Rafah.”
A maior parte das fotografias que produziu são do interior dos hospitais, onde é mais pungente o contacto com as brutais consequências dos ataques israelitas que já mataram perto de 38 mil palestinianos, maioritariamente mulheres e crianças, e que já feriram mais de 85 mil. Mas Lewendon fotografou mais do que a realidade no interior dos hospitais: o seu retrato de Gaza toca as várias esferas da vida dos 2,2 milhões de palestinianos cercados: a fome infligida, o deslocamento forçado de centenas de milhares de civis e o difícil quotidiano entre os destroços dos edifícios destruídos pelos bombardeamentos israelitas.
À entrada de Gaza, no ponto de passagem em Rafah, Lewendon viu “cerca de três quilómetros de camiões carregados de ajuda humanitária” que aguardavam vez para entrar no território. A espera, infrutífera, por vezes violenta, “faz com que os motoristas, visivelmente tensos, pernoitem nos camiões”. “É uma loucura pensar em toda a comida e medicação que se mantém ali retida. De vez em quando, lá entra um.” O processo de entrada em Gaza foi moroso. “Éramos um grupo grande, composto por médicos e pessoal técnico de várias organizações, e tivemos de passar por vários postos de controlo israelitas para podermos entrar. Foi muito stressante.” A primeira coisa que viu foi um grupo grande de palestinianos a cercar um dos camiões carregados de mantimentos que acabava de entrar. “Percebia-se que as pessoas estavam esfomeadas”, observa.
Em Março, da primeira vez que Tom Lewendon entrou em Gaza, ainda não tinha ocorrido o ataque israelita a dois carros da equipa da World Central Kitchen (WCK), que matou sete técnicos que seguiam, sinalizados junto das IDF e claramente identificados, por uma das vias centrais de Gaza. No entanto, a sensação de insegurança perseguiu o fotógrafo já durante a sua primeira estadia. “Eu já estive no Leste da Ucrânia, em trabalho, durante a guerra, e nunca me senti realmente inseguro. Em Gaza ouvem-se os aviões caça e o ruído dos drones a todo o momento e nunca sabemos se vamos ser atingidos ou não. Eu sou branco, sou britânico, fui acompanhado por técnicos da ONU como parte da equipa de uma organização conhecida e mesmo assim senti sempre estar em perigo iminente.”
Nos hospitais, sobrevive-se e morre-se no caos
É a memória da segunda viagem, que realizou em Abril, já depois do incidente com a WCK, que Lewendon guarda de forma mais vívida. “Durante uma semana, vivi no interior do hospital Al-Aqsa e do Hospital Europeu de Gaza”, recorda. “Tivemos de ficar a viver dentro dos hospitais por ser demasiado perigoso fazer as deslocações para o alojamento todos os dias.” No interior, o ambiente era sempre “caótico”. “É difícil de explicar por palavras quão caótico é. As pessoas vivem dentro do hospital. Há tendas dentro do edifício, tendas no exterior, dentro do perímetro. Sente-se o cheiro a morte, a sangue, a vomitado. Há famílias em todo o lado. O hospital estava completamente sobrelotado. Dentro, há ruído constante, há medo, caos e trauma.”
As equipas médicas locais trabalham “de forma completamente gratuita e a maioria perdeu as suas casas”, sublinha. “Conheci um enfermeiro, no hospital de Al-Aqsa, que perdeu 17 membros da família. 17!”, sublinha. “E continuava a trabalhar. Por vezes, via-o a rir-se connosco de alguma coisa…” Lewendon faz uma pausa longa no discurso, visivelmente emocionado. “Ele continuava ali, a trabalhar com toda a dedicação.” Os médicos, enfermeiros e auxiliares trabalham em turnos de 24 horas e descansam outras 24, explica. “Não sei como conseguiam. É um mecanismo de defesa, certamente, é uma reacção muito humana ao trauma, mas eles conseguiam sorrir, rir. E se tivessem algo que pudessem partilhar, eles tentavam sempre partilhar connosco, equipa internacional. Nós recusávamos, ‘não vamos ficar com a vossa comida, são loucos’, dizíamos, mas eles quase forçavam essa partilha. São as pessoas mais heróicas que eu conheci em toda a minha vida.”
No interior, o contacto com os casos médicos deixou marcas profundas no fotógrafo. “Vi uma adolescente a entrar no hospital e trazia o próprio braço amputado na mão. Sentada num dos bancos, com o braço pousado no banco ao lado, ouviu a notícia, por parte dos médicos, que não seria possível voltar a ligar o membro ao corpo dela. Começou a chorar. Estava sozinha, não tinha qualquer familiar ou conhecido com ela. Nem sequer havia analgésicos fortes disponíveis.” A morfina é um dos artigos listados como sendo de entrada proibida pelo governo israelita, que controla a entrada de bens em Gaza. “Existe cetamina”, explica Lewendon, “mas não pode ser administrada a todas as pessoas porque existe uma quantidade muito limitada que tem de ser racionada.”
Outro dos casos a que assistiu foi o de Hala, uma criança que surgiu nas urgências com três quartos da superfície do corpo queimada. “Ela foi assistida e foi possível fazer alguns enxertos de pele”, conta o britânico. Um dos médicos voluntários em Al-Aqsa nesse período, Syed Sayeed, de Long Island, nos Estados Unidos da América, seguiu o caso. “Esse médico criou uma ligação emocional com Hala, tornou-se quase como uma filha adoptiva”, explica. Não é incomum que crianças que perdem toda a família durante os bombardeamentos acabem por ser como que “adoptadas” pelo staff. Aquelas que sobrevivem aos ataques e recuperam dos seus ferimentos acabam por ficar a viver dentro do hospital, onde, motivadas pelos auxiliares, realizam pequenas tarefas. “É uma forma de olhar por elas, mantê-las ocupadas”, evidencia o fotógrafo.
Voltando a Hala e a Syed Sayeed. “Devido à ameaça iminente da incursão em Rafah, o Dr. Sayeed foi transferido para o Hospital Europeu de Gaza e deixou de poder acompanhar de perto o caso. Hala estava estável e aguardava transferência para Boston, nos EUA, onde iria receber cuidados médicos mais adequados.” Duas semanas depois, poucos dias antes da transferência da criança, que já dispunha até de um passaporte, o médico recebeu a notícia de que Hala tinha falecido. “Morreu com uma infecção generalizada (sépsis), que poderia ter sido evitada se existissem antibióticos disponíveis”, lamenta Lewendon. “Muitas pessoas que morrem em Gaza seriam salvas com relativa facilidade noutro local do mundo. O caso de Hala deixou todos muito tristes. O Dr. Syed ficou devastado.”
Tom Lewendon assistiu à morte de muitas crianças. “Vi mais crianças nas urgências do que adultos – não é muito relevante, humanos são humanos. Mas vi muitas crianças a morrer. De uma só vez, um dia, vi cinco crianças a morrer.” Por vezes, sem que nada pudesse ser feito pelos médicos para curar os seus ferimentos, elas permaneciam apenas no interior de uma sala do hospital. “Na sala de ressuscitação, onde está geralmente muito, muito calor, ouvem-se os bips dos monitores de batimento cardíaco, que vão lentamente baixando de ritmo à medida que as pessoas vão morrendo. A família visita e fica ali à espera junto delas. É perturbador.”
O britânico não consegue apagar da memória o grito de uma mãe diante do filho gravemente ferido, em Al-Aqsa. “Nunca pensei dizer isto, mas esse grito vem-me à memória muitas vezes. Aquele grito de agonia, de agonia total, de trauma, foi o mais triste e profundo que ouvi em toda a minha vida. Ainda me magoa. Magoa-me pensar como ela se quebrou ao ver o filho naquele estado.” Ao fim de muitos dias, Tom quase se habituou a conviver com a morte. “Estava a começar a acostumar-me a ver crianças mortas e sentia-me culpado. Diante de mais uma criança morta e eu não estava a reagir da mesma forma. Olhava para elas e já não era a mesma coisa e isso assustou-me muito.”
Uma dessas crianças chamava-se Fatimah. “A mãe dela, que estava grávida, foi ferida durante um bombardeamento. Perdeu toda a família e entrou em trabalho de parto prematuramente. Pensava-se que a criança que carregava também tinha morrido, mas sobreviveu, nasceu às 24 semanas, com apenas 550 gramas. Ela suplicava aos médicos que a mantivessem viva, era a única família que lhe restava.” O staff do hospital chamou-lhe “bebé milagre” por ter sobrevivido – ainda que por pouco tempo. “Toda a gente queria ver Fatimah. Ela cabia na palma da minha mão, de tão pequena.” Não sobreviveu. “Seria improvável que sobrevivesse mesmo em Portugal ou no Reino Unido onde existem todas as condições.”
No exterior, um mar infinito de tendas e microeconomias
O fotógrafo teve oportunidade de conhecer a realidade no exterior dos hospitais e as suas fotografias descrevem as incursões que fez pelo território. “Vi campos de tendas de refugiados intermináveis, no Sul”, conta. Mesmo antes da incursão israelita em Rafah, grande parte da população do norte da Faixa de Gaza já se tinha deslocado para o sul – mais de um milhão de pessoas. “Para onde olhasse, via tendas montadas onde viviam as famílias. Quando pensava na operação das IDF em Rafah perguntava-me para onde iria toda aquela gente, que já estava concentrada em milhares e milhares de tendas, entre os edifícios que, à altura, se mantinham de pé.”
As famílias palestinianas em Gaza são numerosas, observa. “As grandes famílias viviam no interior das tendas e formavam pequenas comunidades. Os mais velhos tomavam as decisões e vivia-se num um sistema de autogovernação, de autopoliciamento. Entre os palestinianos, nunca me senti inseguro. Nunca pensei que algo de mal me fosse acontecer nos campos.” A maioria das famílias que visitou convidava-o para entrar nas tendas e oferecia comida, mesmo em período de escassez. “Eu recusava sempre, dizia que não queria. Sentir-me-ia mal por retirar-lhes do pouco que tinham. Além disso, existem surtos de hepatite A e de gastroenterite, devido à falta de água potável e de condições de higiene básica, a que deixaram de ter acesso.” Existem poucas instalações sanitárias, e nem mesmo as casas de banho portáteis estão autorizadas a entrar em Gaza pelo governo israelita, afirma o fotógrafo, “devido ao perigo de serem utilizadas de formas alternativas”.
A Faixa de Gaza em guerra é uma outra Gaza. “Surgiram novas microeconomias, uma vez que a população teve de reaprender a viver naquelas condições”, conta Lewendon. “Toda a gente tem um papel, toda a gente tem algo para fazer, desde procurar água, comida – actividades que consomem grande parte do dia de todos –, a consertar sapatos, cortar barba e cabelo, etc. Mas surgiram também novos empregos e ocupações. Há equipas que se dedicam a construir tendas ou a aumentá-las, de forma a abrigarem novos moradores. Há agora também estações de abastecimento de telemóveis e outros dispositivos electrónicos.” O fotógrafo viu duas crianças que ligavam os dispositivos, por tempo determinado, a painéis solares ou baterias de carros em troca de poucos dólares.
“As pessoas tentam apenas sobreviver e não existem praticamente momentos de lazer”, narra o britânico. “Pode parecer frívolo falar de lazer neste contexto, mas as pessoas só trabalham, desde que o sol nasce até se pôr.” A presença dos cavalos e dos burros, que são utilizados para o transporte de bens e pessoas, não passou despercebida a Lewendon. “São sempre muito magros, quase não comem, e têm de carregar tanto peso todo o dia. Sentia-me muito mal ao vê-los, mas… os humanos precisam deles. É terrível de ver.”
Os poucos momentos de alegria a que assistiu foram na companhia das crianças palestinianas. “Os papagaios são uma presença constante nos céus da Faixa de Gaza. As crianças usam restos de lixo, de plásticos, de fios, para construir papagaios que lançam ao vento. É muito bonito vê-los no ar.” A presença e ruído dos drones israelitas, armas de vigilância e de destruição que são uma constante nos céus de Gaza, contrastam com os inofensivos brinquedos que voam junto deles. “A presença dos papagaios parece um acto de desafio”, observa. “Uma das minhas colegas de organização tatuou um papagaio, um símbolo de rebeldia.”
Numa das suas deambulações no sul de Rafah, Lewendon conheceu um homem que vendia rebentos de soja. “Perguntei-lhe quem era, o que fazia antes da guerra. Respondeu-me que era CEO do Banco da Palestina. Falava um inglês perfeito – como, aliás, a maioria das pessoas que conheci – e dizia-me que não queria sair de Gaza. Quando o encontrei, o homem, que tinha uns 60 anos, estava sentado, sozinho, a segurar um vaso com água e rebentos de soja. Parecia muito triste.” O britânico crê que muitos homens – “e é uma observação algo sexista”, alerta, “mas que tem que ver com a cultura local” – se sentem particularmente impotentes e sem valor, por serem incapazes de provir para as suas famílias ou de protegê-las da agressão israelita.
“Não sei como as pessoas aguentam e continuam a viver em Gaza”, lamenta. “É o inferno na Terra, é inexplicável como conseguem dar seguimento às suas vidas, sobretudo devido ao impacto da guerra na sua saúde mental.” A maioria dos palestinianos com quem falou “só deseja que a guerra acabe, que pare”. “Querem reconstruir e continuar a viver, vislumbrar um futuro. Não compreendem o motivo pelo qual a comunidade internacional, países que respeitam, não intervêm nesse sentido.”
Ao contrário do que esperava, Tom não foi mal recebido pelos palestinianos quando anunciava ser de nacionalidade britânica. “Inicialmente tinha um pouco de medo de dizer-lhes, mas eles receberam-me bem. Diziam-me nomes de jogadores ingleses e falavam do Mr. Bean. E perguntavam-me quando é que a guerra iria acabar.”
O fotógrafo nutre o desejo de regressar a Gaza. “Conheci tanta gente lá, pessoas com quem mantenho contacto agora, mesmo apesar da minha ausência.” E não tem medo. “Nunca pensas que vais morrer, pensas sempre que isso pode acontecer aos outros, não a ti. Houve momentos em que tive medo, sim, mas o que se vive lá é tão intenso que não há tempo para pensar nisso. Especialmente dentro dos hospitais. Gaza é tão avassaladora, tão intensa, que não tens tempo de ter medo.”
Algo de traumático permanece, ainda assim, na mente do britânico. É o próprio quem assume. “Estranho seria que tudo o que vi e vivi não me afectasse. A minha mente está constantemente em Gaza.” Quer ver decretado um cessar-fogo e deseja, mais do que tudo, ver ajuda humanitária a entrar livremente no território. “Os civis palestinianos têm de ser protegidos, tem de haver comida, água, medicamentos, tem de existir um esforço da comunidade internacional no sentido da paz e da reconstrução de Gaza.”