Os franceses são irritantemente tão bons que até na criação de conceitos no mundo do vinho levam-nos aos limites da irritação. Em Portugal, um produtor que só vinifique os seus vinhos com uvas próprias é — por favor, não se riam — um vitivinicultor engarrafador (quão glamoroso é alguém apresentar-se numa feira internacional como vitivinicultor engarrafador?!). Já em França, esse mesmo produtor é um enólogo. Uma só palavra, sonora, funcional e directa ao assunto. Por cá, apesar de o país ter muitos viticultoreso mais sonante de todos é Mário Sérgio Nuno. Agora que celebra os 35 anos da Quinta das Bágeiras, o produtor da Bairrada convocou outros 15 viticultoresque vão dar a provar os seus vinhos e colocar na agenda a necessidade de se valorizar os produtores que só trabalham com as suas uvas. Defensor da Baga quando outras a arrancavam, disruptivo, sonhador, carregado de humor e grande defensor da cultura da Bairrada e arredores, diz que copia os franceses como antes copiava pelo melhor aluno da turma (“o Urso”). Se era para fazer bem, juntava-se aos melhores. Uma lição de vida.
O evento Vigneron, As Nossas Uvas, Os Nossos Vinhos pretende mostrar o quê?
Pretende mostrar com rigor àqueles nos visitam durante um dia o que é o conceito vitivicultor-engarrafador (que nós gostamos de chamar enólogo porque o conceito francês é mais simples e funcional) e mostrar que diferenças existem entre quem só faz vinhos com as suas uvas e quem compra uvas ou vinhos para fazer as suas marcas. Mais importante, pretende mostrar que é fundamental que um enólogo tenha condições para viver com dignidade. Ou seja, que um enólogo pode e deve viver bem só com a sua actividade principal. Um enólogo tem de viver com dignidade. Ponto.
Isso é um movimento contra outros modos de organização no sector do vinho?
De maneira nenhuma. Ser do contra não faz parte da minha maneira de ser. Quando eu e a Filipa Pato começamos a constituir os Baga Friends, em Lisboa, uma coisa que eu sempre disse foi que sou a favor da Baga. E ser a favor da Baga não significa que eu seja contra o que quer que seja. Significa só isso: defender a Baga. Sou eu contra as pessoas que compram uvas? Obviamente que não. Em Champagne, os viticultores independentes e os comerciantes vivem paredes meias e entendem-se.
Vocês fazem o evento, dão a conhecer o conceito de enólogomas, depois, um consumidor não terá, numa garrafeira, a capacidade de perceber se o vinho é de um enólogo ou de um produtor que compra uvas ou vinho.
Já existe uma associação dos vitivinicultores engarrafadores — a Fenavi — que tem trabalho feito e nós não queremos substituir ninguém. Este é apenas um evento que, inserido nos 35 anos das Bágeiras, junta produtores para, livremente, discutirem o assunto. Sem formalismos. Se se entender que, à semelhança do que existe em França e Itália, faz sentido criar-se um símbolo para colocar nas garrafas e que identifique o conceito de enólogopois isso poderá eventualmente ser trabalhado. A lei já é bem explícita sobre o que é o viticultor engarrafador (alguém que só faz vinhos com as uvas da sua produção), mas é necessário comunicar isto com maior eficácia.
Quais foram os critérios de escolha dos produtores para estarem presentes, sendo que Portugal tem muitos enólogo.
Foi completamente aleatório, embora tenha convidado produtores que pensava que eram viticultoresmas que não estavam registados assim. A ideia foi, por um lado, ter dois ou três produtores de diferentes regiões e, por outro, produtores de dimensão variada. E isto porque há quem pense que lá por um produtor só fazer 3 ou 4 mil garrafas – os que se classificam como vinícolas boutique — é automaticamente um enólogo (se comprar uvas, não o é) e há quem pense que pelo facto de um produtor ter grande dimensão está fora do campeonato dos viticultores. Não, não está. Portugal tem de facto muitos viticultoresmas a minha adega tem limitações para convidar mais produtores.
O conceito de enólogo terá potencial comercial em Portugal?
Acho que sim, mas mais em termos de filosofia de futuro, que implique a defesa da agricultura. Repare que, no caso da Quinta das Bágeiras, e do ponto de vista comercial, até era mais interessante para mim não ser enólogo porque, só em matéria de espumantes, temos um défice de 40% face às encomendas, mas mantenho-me fiel ao espírito do enólogo porque acho que é possível — e os franceses comprovam-no — viver exclusivamente da agricultura. Aliás, desde os meus bisavós que a minha família só vive da agricultura.
Mas, hoje, isso pode parecer uma ideia romântica no mundo do vinho quando as margens do negócio por garrafa são ao nível dos cêntimos.
Pois pode, mas eu acredito, até pelo exemplo da minha família, que isso é possível. E aquilo que eu pretendo com este evento é demonstrar que outros podem fazer o mesmo. Ou seja, explorar o conceito de enólogo para melhor valorizar as minhas uvas, remunerar melhor os meus funcionários e atrair gente nova para a agricultura (um problema sério, este). Eu acho legítimo que cada um possa ter uns terrenos geridos em modo de passatempo e vender as suas uvas — é bom que tal exista porque isso impede o abandono de área de vinha —, mas o que eu quero é que a agricultura seja ela própria um modo de vida rentável. Caso contrário, gente como o meu filho — o Frederico começou a trabalhar recentemente comigo — não vai cuidar de vinhas para vender uvas a 50 cêntimos o quilo.
Voltando ao défice, isso significa que poderia estar a subir os preços a valores interessantes.
E nós temos vindo a subir os preços, mas, como não estamos sozinhos no mercado, temos de fazer isso de forma moderada. Eu gostava de aumentar mais os preços para a minha empresa ter melhores resultados, mas há uma coisa de que nunca me esquecerei: cheguei onde cheguei porque os meus vizinhos acreditaram em mim, apoiando-me com a compra de vinhos. Se eu agora passasse o meu espumante de entrada de gama de 12 para 25 euros, muitos deles não teriam condições para comprar os meus vinhos. Isso nunca farei, até porque, apesar de ter vinhos para todos os segmentos, acho que toda a gente tem direito a beber os meus vinhos. Mas há também uma coisa que nunca fazemos aqui, que é baixar preços. Isso não. Se as coisas mais caras não se venderem, eu bebo-as com os amigos, mas baixar preços é que não. Ou seja, baixar preços, jamais; aumentar preços, sim, mas de forma sustentada, porque se faço disparar os preços como muita gente me aconselha fico com o vinho na adega e fecho as portas. Bem vistas as coisas, já não tenho idade para começar agora outra profissão. E eu gosto muito de ser agricultor.
De onde vem essa paixão pela cultura francesa?
O meu pensamento é este: está tudo certo em França? Não. Quero fazer vinho igual aos franceses? Não. Quero crescer como eles? Ai sim, sim, isso quero. É como na velha história: se eu sou um aluno mediano, na altura dos testes eu quero é estar ao lado daqueles que sabem mais do que eu para copiar e evitar a negativa. Coisa que no meu tempo acontecia quando, na escola, me sentava ao lado de um colega que sabia mais e era conhecido como o Urso. Portanto, se tiver que copiar, copio pelos melhores, neste caso, pelos franceses.
Mas o que é que um enólogo francês tem que um português não tem?
Três coisas: o perfeccionismo, comunicação desse perfeccionismo e eficácia na organização e defesa de interesses comuns. Atenção que nós, à nossa maneira, fazemos tão bem quanto eles — e temos castas únicas e terroirs únicos —, mas o que eles têm é uma arte de comunicar e uma capacidade organizativa de fazer inveja. Por exemplo, para marcar uma vindima as pessoas juntam-se no sindicato dos viticultores para decidir três coisas: a data de vindima, quanto é que vão poder vindimar por hectare e o preço do quilo da uva. Ou seja, a imagem de uma região não começa no rótulo ou num narrativa; ela começa é na basea partir daquelas três variáveis.
Por cá os preços são definidos pela lógica do deus-dará.
Pois, e em que é que isso traduz? Numa imagem que leva o vinho para o campo da banalidade. Mas um francês — agricultor ou consumidor — não aceita isso. Um francês sabe que não se dá um pontapé e aparece uma garrafa de Champagne.
Mas em França também nem tudo é um mar de rosas. Em Bordéus estão arrancar vinhas.
Certo, mas, ao menos, em França os viticultores e os comerciantes — com interesses diferentes — sentam-se à mesa e chegam a consensos, com o sentido de defender a sustentabilidade do sector no longo prazo. Nós precisamos urgentemente de sintonia entre todos os parceiros do negócio.
Qual é a área de vinha e a produção média anual da Quinta das Bágeiras?
Temos neste momento 28 hectares em produção (outros cinco em preparação) e fazemos entre 130 e 140 mil garrafas por ano.
Existe a perspectiva de aumentar a área?
Nós estamos felizes, porque o Frederico veio trabalhar connosco, mas nem a nossa adega nem o nosso estilo — vinificações em lagar — permitem trabalhar mais área. De resto, eu não preciso de ter 1 milhão de garrafas. Quero é viver dignamente com as 150 mil garrafas que poderei vir a produzir. Quero é crescer em valor, não em quantidade de vinho. Os franceses, face aos problemas, criam condições para aumentar o valor das garrafas que já produzem; os portugueses, face aos problemas, tentam arranjar mais vinhas, ou uvas ou vinho para produzir mais garrafas e vendê-las ao mesmo preço ou até a preços mais baixos. Lá está, sou orgulhosamente português, mas eu estou sempre a copiar pelos que sabem mais do que eu — os franceses.