O Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), por acórdão datado de 6 de Junho de 2024, decidiu declarar a “nulidade de três deliberações da Câmara Municipal de Benavente de 18 de Maio de 1992, de 6 de Dezembro de 1993 e de 21 de Outubro de 1996” que aprovaram um loteamento turístico a instalar na Herdade da Vargem Fresca.
O seu promotor, a sociedade Portucale – Sociedade de Desenvolvimento Agro Turístico SA”, empresa do extinto Grupo Espírito Santo, propunha a instalação de 237 moradias, dois hotéis, dois campos de golfe (entretanto já construídos), um centro hípico, uma barragem (também já construída) e um campo de tiro, um investimento de 200 milhões de euros num terreno com 509 hectares.
Os antecedentes da decisão tomada pela instância judicial reportam-se a 21 de Dezembro de 2007, quando a Associação Nacional de Conservação da Natureza (Quercus) interpôs uma providência cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAFL). O município de Benavente, a Portucale e o Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional foram as entidades visadas pela organização ambientalista. Reclamava a paragem das obras do empreendimento turístico, pedindo a nulidade do alvará emitido pela Câmara de Benavente que autorizava a execução do projecto. A Portucale já tinha avançado com a abertura de arruamentos no interior do povoamento de sobreiros.
A sentença que foi então proferida “proibiu o corte de qualquer sobreiro e o licenciamento e/ou a realização de quaisquer obras numa distância inferior a cinco metros do tronco destas árvores protegidas, sentença que se mantém em vigor”, lembra ao PÚBLICO o advogado Carlos Maia, constituído pela Quercus.
Na altura, a intervenção desta organização impediu que o corte de sobreiros prosseguisse, mas mesmo assim foram abatidas centenas de exemplares para abrir arruamentos, antes de o tribunal mandar parar as obras.
Fazendo a cronologia dos acontecimentos, no final do último Governo liderado por Cavaco Silva, em 1995, “o despacho para abate de sobreiros chegou a ser autorizado”, mas foi revogado no Governo de António Guterres, a 28 de Março de 2005. O documento conjunto assinado pelos ministros do Ambiente, Francisco Nunes Correia, da Economia, Manuel Pinho, e da Agricultura, Jaime Silva considerou que não estava “devidamente fundamentado o imprescindível interesse público do empreendimento”. A ausência de uma declaração de impacte ambiental esteve também na base da decisão dos ministros do executivo socialista.
Contudo, no início de 2005, era primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, já com o governo demissionário, os então ministros Nobre Guedes (Ambiente), Telmo Correia (Turismo) e Costa Neves (Agricultura) assinaram o polémico despacho conjunto n.º 204/2005 de 8 de Março. O documento reconhecia a “imprescindível utilidade pública do empreendimento”, interpretação que abriu caminho para o abate de 2605 sobreiros, num total que foi estimado em 35 mil árvores do extenso povoamento de montado que cobria grande parte da Herdade da Vargem Fresca.
Durante uma das sessões do julgamento, em Março de 2011, do caso Portucale relacionado com o abate ilegal de sobreiros, na Herdade da Vargem Fresca, Nobre Guedes, que depôs como testemunha, reconheceu que “teria dado outro despacho se soubesse que a declaração de imprescindível utilidade pública iria provocar o abate imediato de sobreiros. Estava convencido de que iria demorar meses para que isso acontecesse”presumiu o ex-governante.
Nos anexos apensos ao acórdão do TCAS, as contas feitas por técnicos da então Direcção-Geral de Florestas/Instituto Florestal revelam que “foram abatidos 945 sobreiros”, ao abrigo da autorização que foi concedida em Março de 2005, e os técnicos estimam que a conclusão do projecto de loteamento “implicaria um abate de entre 6202 e 7106 sobreiros.” A idade média dos sobreiros existentes variava entre os 40 e 50 anos.
A Portucale tinha outros números e dizia, na altura, que seriam 16 por cento dos sobreiros. Num comunicado difundido pelo Grupo Espírito Santo, sustentava que “o corte de sobreiros era inexpressivo: numa floresta de cerca de 35.000 não atingia 3000”.
Avaliação de impacte ambiental em falta
Na sequência da decisão tomada pelo TAFL, a empresa promotora do empreendimento apresentou recurso da decisão no TCAS. O acórdão proferido em 6 de Junho 2024 “deu razão ao entendimento que a Quercus sempre defendeu, nomeadamente de que o empreendimento em causa deveria ter sido precedido de um procedimento de avaliação do impacte ambiental”, realça a Quercus.
A decisão do TCAS destaca na sua fundamentação, o teor das deliberações tomadas pela Câmara de Benavente, que aprovou o projecto da Portucale sem previamente sujeitar o mesmo a procedimento de avaliação de impacte ambiental e, ainda, as decisões que “violaram a legislação que regula a ocupação do solo após a ocorrência de um incêndio florestal”.
A declaração de nulidade, sobre uma decisão tomada há mais de 20 anos decorridos sobre a prática dos actos administrativos impugnados, pode estar confrontada com uma nova realidade, confirmada por Carlos Maia: o lote inicial do projecto da Portucale confronta, em parte, com o campo de tiro de Alcochete e, consequentemente, com o futuro aeroporto recentemente anunciado para substituir o de Lisboa.
Entretanto, a Portucale saiu de cena na sequência do desaparecimento do Grupo Espírito Santo e já se anuncia para a Herdade da Vargem Fresca a instalação de um recorrer de luxo que pode vir a custar cerca de mil milhões de euros, dinamizado por outro promotor: Portugal Village of Life.
Nas declarações que prestou ao jornal Eco a 2 Agosto de 2023, o CEO da empresa, Pedro Alves, falava da instalação de “uma pequena vila de luxo para 3 mil pessoas com mais de 65 anos”. Serão instaladas cerca de 1400 unidades independentes, entre apartamentos e moradias, um clube de golfe, um hotel com 60 quartos, uma pequena área de retalho e ainda “entre sete a dez restaurantes”. Fica a garantia que não será cortado um único sobreiro.
“A decisão judicial tomada pelo TCAS obriga os actuais proprietários da herdade a repensar a utilização da mesma para os fins que têm sido publicamente anunciados” conclui o comunicado da Quercus.