Pedem-me que tome a defesa da casta Mourisco Tinto, depois de reprovada a tentativa de reconhecê-la no rótulo ou contra-rótulo como merecedora de denominação de origem ou indicação geográfica.
De facto, quem consultar a Portaria n.º 383/2017, de 20 de Dezembro, não descobre a Mourisco Tinto entre a lista de «castas aptas à produção de vinho e produtos vínicos com direito a denominação de origem ou indicação geográfica da Região Demarcada do Douro». Não se trata de um erro ou de um esquecimento. A subtracção foi propositada, conquanto alivie certas consciências o preâmbulo do documento que uniformiza os vinhos do Douro:
Pretende-se manter a diversidade de castas existentes na RDD uma vez que esta tem contribuído de forma significativa para a distinção dos vinhos desta região demarcada. Simultaneamente reconhecem-se os nomes utilizados para a mesma casta e que são expressão da tradição regional como é o caso, em especial, da «Tinta Roriz», da «Tinta Amarela», da «Sousão» e da «Códega».
No tempo da Casa do Douro, Álvaro Moreira da Fonseca inventariou as castas para execução do Cadastro Vitícola da região. Dividiu-as em cinco classes: muito boas, boas, regulares, medíocres e más, conforme o seu interesse para Vinho do Porto. Somou então 88 castas, sendo 51 tintas e 37 brancas, entre autóctones, tradicionais e estrangeiras. Estas 88 castas resolvem a condição climática e orográfica irrepetível do Douro. Até o enoturista mais entendido se admira ao descobri-las tão sabiamente misturadas numa qualquer primeira vinha pós-filoxera: entre as tintas, Touriga Francesa, Tinta Roriz, Tinta Barroca, Tinta Amarela, Touriga Nacional, Tinto Cão, Mourisco Tinto, Donzelinho Tinto, Cornifesto, Rufete, Casculho, Tinta Francisca, Malvasia Preta; e, entre as brancas, Viozinho, Malvasia Fina, Gouveio, Malvasia Rei, Esgana-Cão, Rabigato, Trincadeira, Alvaraça, Samarrinho, Códega, Moscatel Galego. Ambos os elencos, obviamente, poderiam alongar-se.
Contudo, por volta de 2007, inúmeras castas foram renomeadas e algumas mesmo despromovidas a «sinónimo de…», sempre, note-se, em detrimento do seu nome vulgar no Douro e, no fim, da preservação da ilha de biodiversidade constituída em 1756, com a demarcação do Alto Douro vinhateiro. Salta à vista a perseguição ao bom nome das nossas castas, quer as autóctones, quer as tradicionais. Só escaparam as estrangeiras.
Assim foi que a Mourisco Tinto desapareceu da lista de castas aptas a um vinho com Denominação de Origem no Douro, embora frutifique radiante nas vinhas velhas e se realize anónima em muitos vinhos.
É uma casta antiquíssima e integra mesmo o inventário incluso na Descrição do terreno em roda da cidade de Lamego duas léguas, saído no longínquo ano de 1531 pela pena (literalmente) de Rui Fernandes. Aí, o autor nomeia-a «mourisco», sem o qualificativo «tinto» ou «preto». (Recordo que o mesmo acontece no inventário de Álvaro Moreira da Fonseca). Alguns séculos volvidos, já em 1860, o barão de Forrester atribuir-lhe-ia identidade invejável:
This is, we believe, the original port-wine grape of a Burgundy character, producing a wine free from acidity and full of fine dry flavour. The Mourisco port is imported into the country by Messrs. Henry White and Co., 17, Mincing Lane, London.
A demarcação vinhateira de 1756 acelerara a diversificação das castas autóctones, trazendo outras que, um dia, ora se afirmariam tradicionais, ora se manteriam estrangeiras. Quatro delas encimam as listas respectivas: Tinto Cão (autóctone, pré-filoxera), Touriga Francesa (autóctone, pós-filoxera), Tinta Roriz (tradicional desde, pelo menos, 1895, quando deixou de ser Aragonez) e Alicante Bouschet (estrangeira). Hoje, as primeiras vinhas pós-filoxera do Douro constituem um inestimável banco genético. Um património valioso e segurado se fosse outro o país a albergá-las.
Aquando da filoxera, o Alto Douro vinhateiro foi, de facto, capaz de tomar conta de si próprio. Deu-se, então, um acontecimento mágico: o aparecimento de inúmeras Mouriscos-de-semente, produtos do cruzamento inteligente de Mourisco Tinto com Touriga (Nacional). Nasceram desta forma, e apenas a título de exemplo, a Touriga Francesa, a Tinta da Barca, a Tinta Aguiar e a Tinta Melra.
Vamos por partes. A Mourisco Tinto é uma cepa portentosa, mas sofre por uma inferioridade: a flor é funcionalmente feminina. É por este motivo que, regra geral, só a vemos realizada entre outras castas que lhe servem o pólen capaz de fazer vingar cachos generosos; nessa situação, os vinhos resultam da vindima paciente de videiras avulsas, conquanto nunca se lhe tenha atestado valor enológico verdadeiramente credor. Só os mais afoitos lhe reservam bardos ou pequeníssimas parcelas estremes, sob condição das tais dadoras se situarem no seu entorno. No Cadastro Vitícola, Álvaro Moreira da Fonseca incluiu a Mourisco no grupo das «muito boas», mas sem dela desvendar o valor enológico de per si.
Ao invés, a Touriga (Nacional), com a qual se cruzou, compensa o seu hábito de crescimento desajeitado, e até a fealdade das folhas abrasadas pelo sol e pela míngua de água no verão, com créditos enológicos excelentes: «the finest», assim lhe tirou o chapéu o barão de Forrester.
Ao retrato da Mourisco Tinto junte-se estoutro dado: o de o progresso desapiedado da filoxera ter mostrado a sua resistência incomum ao insecto devastador. Cincinnato da Costa, no exacto ano de 1900, enaltecia-lhe esta superioridade:
Entre outras qualidades notáveis que distinguem esta casta, goza ela da propriedade apreciável de ser resistente à filoxera, tendo-se notado o facto de em toda a região do Alto-Douro, onde as devastações do terrível insecto destruíram quase por completo, há vinte anos, importantíssimos vinhedos, o Mourisco continuar impávido, no meio de grandes manchas filoxeradas, amadurecendo sempre os seus preciosos frutos.
Uns anos antes, corria o de 1878, Joaquim Carvalho de Azevedo Melo e Faro, ao reconhecer «o vigor e a força vegetal das [videiras] que são produzidas naturalmente pelas sementes», aconselhara
a fazer a sementeira das vides, escolhendo as sementes daquelas que se considerem mais refractárias, ou menos atacadas pelo Phylloxera, como são as variedades conhecidas por Alvaraça [outra vítima da sinonímia a que obrigaram as castas do Douro], Mourisco e Tinto Cão.
Com esse mesmo propósito, Alfredo Allen declararia pouco depois: «…tencionamos plantar este ano [de 1879] uma pequena renova de cerca de um milheiro de cepas, filhas de bons e fortes Mouriscos, semeados na primavera de 1877», em Campanhã, Porto, e «transplantados para o viveiro no Noval [Douro] em Fevereiro do ano seguinte».
Somente o tradutor da descrição da Mourisco tinto au preto du Douro, a partir da redação original do visconde de Vila Maior e para a edição de junho de 1885 do Messager Agricole du Midi, questionava, numa nota de rodapé, a resistência da casta ao inseto: «Les expériences que nous avons faites en France nous ont démontré que M. le vicomte Vilamaior s’est illusionné à ce point de vue, ainsi que cela a eu lieu dans notre pays au début de l´invasion phylloxérique pour divers cépages (Colombaud, Etraire de l´Adui, etc.) — G. F.». Intuí de imediato que o tradutor fora o marselhês Gustave Foëx, discretamente identificado pelas iniciais, então diretor da École d´Agriculture de Montpellier. Foëx, porém, ficaria sem resposta, pois o Visconde havia falecido no ano anterior ao da publicação do Messager.
Entre as novas variedades seleccionadas a partir do cruzamento de Mourisco e Touriga, somente a Tinta da Barca tem a autoria desvendada — devemo-lo a Albino de Souza Rebello, proprietário da Quinta da Barca, em Soutelo do Douro.
Albino de Souza Rebello (mantenho-lhe deliberadamente a grafia original), falecido no dia 29 de Janeiro de 1926, jaz na campa nº 44 do cemitério do mesmo Soutelo do Douro. No dia 10 de Agosto de 1874 — em pleno impasse político na luta contra a filoxera, desaproveitado assim o tempo que mediou ente ’72 e ’76 —, com 29 anos e ainda solteiro, obteve, por 90 dias, o passaporte para viajar desde Paradelinha, e pela barra de Lisboa, até a francesa Marselha… Tenciono um dia recriar essa aventura.
O testemunho detalhado de Duarte de Oliveira (1903), o qual suportaria a descrição resumida da casta no Tomo VII do Traité General de Viticulture: Ampélographie, publicado por P. Viala e V. Vermorel em 1909, é inequívoco quanto à sua origem, incluindo um pormenor identitário que serve na falta de uma ilustração de Tinta da Barca: «A l’automne, les feuilles d’Albino de Souza prennent des tons carmine vif, ce qui, à défaut d’autres caractères, dans un encépagement régulier ferait distinguer parfaitement ce plant de Mourisco tinto [o sublinhado é meu] à une distance de 50 mètres».
Por mais que Duarte de Oliveira defendesse o nome Albino de Souza sobre o de Mourisco-de-semente ou Tinta da Barca, foi a referência geográfica que acabou por prevalecer no batismo popular: de Quinta da Barca, na margem esquerda do Douro, defronte ao Castedo. O colaborador da Ampélographie desvela a origem da casta no testemunho de suporte:
Ce cépage, qui s’est répandu beaucoup et rapidement dans tous le Haut-Douro, d’abord sous le nom un peu vague de Mourisco de semente et Tinta da Barca, est issu d’un semis fait avec des graines de Mourisco tinto, par M. Albino de Souza Rebello, vers 1880, au moment où on préconisait beaucoup ce dernier cépage comme un des indemnes au Phylloxera, parmi les variétés portugaises. C’est, sans doute, le produit d’une hybridation due au hasard. [Sei, por experiência própria, que «hibridação» («hybridation») em vez de «cruzamento» terá sido um abuso linguístico premeditado, mas desconheço o que o decidiu a escrever «due au hasard», sem que tenha admitido a possibilidade de um cruzamento intencional]. Le père restant tout à fait inconnu, le fils n’a gardé aucun des caractères botaniques de la mère qui lui a donné naissance.
Dois parágrafos adiante, o autor precisaria:
De ce semis fait à Paradelinha (Haut-Douro) M. Albino de Souza a obtenu divers plants, mais celui qu’il a propagé a été, parmi tous, l’individu qui montrait le plus le vigueur, commençant à fructifier à la quatrième année. Les premières grappes ont surpris son obtenteur par la grandeur et par l’abondance d’œnocéanine que contenait la peau: de suite il a compris que son gain avait de la valeur et un grand avenir dans la vinification de Barca, vis-à-vis Castedo, dans une magnifique situation pour la production de vins du plus haut mérite;
e, ouro sobre azul:
Nous ajouterons que son produit ne sera jamais si fin que celui de Touriga; il n’aura jamais ses nuances qui impriment au vin de Porto son cachet, des caractères tous spéciaux et que deviennent inimitables: mais il est sûr que l’Albino de Souza, dans la vinification de ce genre de vins, tient une place que ne fera qu’augmenter sa valeur.
Entretêm-me algumas perguntas: durante quanto tempo se confundiu — um pouco estranhamente, assim foi — a Tinta da Barca com a Touriga Francesa, apesar da dissemelhança flagrante aos olhos do viticultor comum? Seriam indistintas até Álvaro Moreira da Fonseca desfazer o desacerto, ao disciplinar as castas no exemplar Cadastro Vitícola realizado pela Casa do Douro? De facto, em 1943 o cadastro das vinhas de Vargellas revela a Barca e a Francesa distintas e dominantes nas primeiras vinhas pós-filoxera da quinta.
O engano, porém, persistiu na coleção ampelográfica instalada no Centre de Ressources Biologiques de la Vigne (CRB-Vigne), em Vassal-Montpellier. Aí, foi evidente a troca de identidade entre as duas castas aquando do seu estudo: entre 1958 e 1961, o da Albino de Souza (exibida sem qualquer sinonímia apensa, nem mesmo Tinta da Barca); e, entre 1977 e 1979, o da Touriga Francesa, embora esta, a posteriori, merecendo uma anotação manuscrita — «= Albino de Souza» — no dossier de estudo.
No verão de 1982, Paul Truel, então diretor da coleção e reputado ampelógrafo, veio em missão a Portugal
dans le cadre d’une étude des variétés, liée à la réalisation d’un Projet d’Ampélographie et de Synonymie des cépages, élaboré conjointement par l’Institut de Gestion et des Structures Agraires, l’Enseignement Supérieur Agricole et l’Institut de Recherches Agronomiques du Portugal, et conduit en collaboration avec les Organismes viticoles régionaux,
mas regressou a França sem desfazer o engano. A propósito, escreveu no Progrès Agricole et Viticole (PAV):
Dans la collection du Centre d’Études Viti-vinicoles du Douro, à Regua, Tinta da Barca, dont les feuilles sont orbiculaires et entières, a paru différent de Touriga Francesa à feuilles plus découpées, alors que dans la collection de M. Soares Franco, Tinta da Barca a été vu identique à Touriga Francesa. Il est donc possible que dans le Douro on trouve sous le nom de Tinta da Barca une variété différente de Touriga Francesa, mais une comparaison plus approfondie que celle qui a pu être faite rapidement dans la collection de Regua serait nécessaire pour trancher cette question.
Le nom Touriga Francesa n’est pas cité dans les anciens ouvrages d’ampélographie que nous avons pu consulter, alors qu’Albino de Souza et Tinta da Barca sont données pour synonymes dans l’ampélographie de Viala et Vermorel, et que cette synonymie a été confirmée dans la collection Vassal.
Nous avons cependant conservé Touriga Francesa comme nom principal, parce qu’il est utilisé dans la liste des variétés du Portugal et pour éviter les confusions entre ce cépage et la Tinta da Barca du Douro, dans le cas où une différence entre ces deux cépages serait confirmée. Sinon, la dénomination Tinta da Barca, qui est plus ancienne et ne prête pas à confusion avec Touriga Nacional est préférable.
Ambiciono provar — esperançado que de forma tão inequívoca quanto foi esclarecida a origem da Tinta da Barca por Duarte de Oliveira — que também devemos a Albino de Souza Rebello a criação da Touriga Francesa.
Manuel Russo (1913-2000), prestigiado vinicultor em Soutelo do Douro, na festa do seu octogésimo aniversário passou-nos, a mim e a David Guimaraens, um valioso testemunho oral: «Foi Albino de Souza que criou a Touriga Francesa a partir do Mourisco Tinto e da Touriga Nacional». O carismático vinicultor foi o homem de confiança absoluta dos ingleses da Cockburn Smithes — ausentes de Portugal durante a Segunda Guerra Mundial — e, mais tarde, adegueiro exclusivo da Taylor’s e da Fonseca Guimaraens. Foi nesta qualidade que o conheci.
A revelação surpreendeu-nos; se até esse dia intuíamos a Francesa uma filha da Touriga Nacional, por manifesta semelhança no fenótipo, nunca equacionáramos tratar-se de outra das uvas mouriscas pós-filoxera. Dada a firmeza do testemunho e a evidência nas videiras de novo observadas, dispensámos qualquer prova científica da filiação. Ademais, o seu criador saíra do anonimato.
Infelizmente, Manuel Russo não viveu até ao dia de eu lhe poder dizer que foi a minha veemente discórdia pública no rebatismo da Francesa que precipitou a descodificação genética da casta e validou o testemunho (de filiação) que nos havia confiado. Arrependo-me de nunca lhe ter perguntado em que ano a nossa Touriga ganhou o epíteto «Nacional» para a distinguir da «Francesa», uma vez que pressinto na resposta a chave para esclarecer de vez a criação desta última. Suspeito, todavia, que Manuel Russo me tivesse dirigido para as memórias de Álvaro Moreira da Fonseca.
O riquíssimo mundo das Mouriscos está ainda por descobrir. Noutro dia, intrigou-me sobremaneira uma óbvia Mourisco na Quinta do Cruzeiro, propriedade da Fonseca Guimaraens, em Vale de Mendiz, que me foi identificada por Laurindo Silva, experiente classificador de castas da antiga Casa do Douro, a quem recorro nestas descobertas. A posterior descodificação da casta pela equipa de geneticistas da UTAD — Isaura Castro e Ana Cintra — revelou tratar-se de um cruzamento, possivelmente entre Mourisco Tinto e Sousão.
Entretanto, perdeu-se o rasto ao híbrido com o nº 1244-11, obtido em França por V. Malègue, e de que Duarte de Oliveira nos deixou nota em 1916:
Por nossa indicação o afamado hibridista francês, Mr. Malègue, ocupou-se seriamente da hibridação do Mourisco tinto com várias castas americanas, fundando grandes esperanças nos resultados a colher. Para esse fim repetidíssimas vezes lhe fornecemos pólen do Mourisco e possuímos agora em estudo um dos seus híbridos obtidos, e por Mr. Malègue gentilmente oferecido, sendo, contudo, demasiadamente cedo para dele falarmos. Entretanto, podemos desde já dizer que o seu vinho é pouco foxé e a sua cor de um vermelho intenso, mais vivo que a do nosso Sousão do Douro [outro sublinhado meu, para bom entendedor] ou a da Baga de Louro do sul, devendo ter, por isso, aplicação proveitosíssima para os vinhos de exportação, se ela for menos oxidável do que a dos Bouschets e de muitos outros híbridos. Este Mourisco, que recebemos com o nº 1244-11, fora cruzado por Mr. Malègue com o seu 160 que era produto de 3103 Couderc x Herbemont x vinifera.
Cinco anos volvidos, Duarte de Oliveira estenderia o depoimento sobre este produtor direto obtido por Malègue:
O pequeno número de exemplares de que dispomos e que se encontram nos nossos vinhedos em Murça, ainda não nos permitiu realizar qualquer estudo analítico. Entretanto, em 1910, prováramos uma amostra do seu vinho que Mr. Malègue obsequiosamente nos enviara pelo correio, acompanhada das seguintes palavras: «Vai receber uma amostrinha de vinho de 1909, proveniente de um híbrido de Mourisco tinto, cruzado com o meu 160. Este último é o produto do 3103 Couderc x Herbemont-Vinifera, obtido por mim. A planta parece ter alguma resistência, mas não o suficiente para prescindir, por completo, dos tratamentos contra o míldio. Sinto não poder ainda fornecer-lhe esclarecimentos mais completos; todavia, pareceu-nos que lhe seria agradável ver e examinar o vinho de um recém-nascido luso-americano da sua Videira de que em tempos longínquos tanto me falou».
E, ainda, sobre a prova do vinho:
Não ocultaremos, com perdoável satisfação, que a amostra que Mr. Malègue teve a amabilidade de nos enviar do vinho da sua obtenção luso-americana, nos deu imenso prazer, porque, se a nova cepa não chegar a ser da resistência que sempre in mente concebêramos, o vinho, pelo seu lado, poderá ser aproveitável para determinada vinificação em que a matéria corante toma lugar preponderante, comercialmente considerada, no valor do produto. Enquanto à prova de boca, é áspero, sobretudo, a final, e medianamente agradável, conquanto deixe muito pouco a perceber a existência do sangue americano que, porventura, o Herbemont lhe deveria ter transmitido.
Perdeu-se também o rasto de um outro híbrido obtido por Malègue: o nº 2248-7 Rupestris-Chasselas x Touriga, igualmente reportado por Duarte de Oliveira, mas já em 1921:
Este produtor directo foi obtido há uns 16 anos pelo notável hibridista Mr. V. Malègue, a quem repetidas vezes fornecemos pólen colhido da nossa preciosa Touriga duriense, mas correndo na mãe franco-americana o sangue do Chasselas, por um jeu de la nature, veio à luz um filho branco em lugar de preto, como era de presumir, para sair semelhante à mãe. É uma Videira que parece vir a ser extremamente produtiva. Ao segundo ano de enxertia, pois não fora reproduzida de pé-franco, para adiantarmos a sua frutificação, contámos em cada um dos indivíduos que possuímos em Murça, cerca de trinta cachos, correspondendo a 4 quilogramas por pé. Além dos cachos produz numerosos respigos. […] Ainda não tivemos, porém, o tempo suficiente para confirmar o primeiro estudo; entretanto inclinamo-nos a crer que este novo produtor directo virá ocupar distinto lugar entre outros de uvas brancas já existentes.
Outro caso extraordinário comprova a cumplicidade do país vinhateiro do Douro com a escola hibridista francesa aquando da filoxera. Em 1882 — oito anos depois da tal viagem de Albino de Souza a França —, Alexis Millardet e o seu colaborador, Charles de Grasset, obtiveram um híbrido de Rupestris x Mourisco-preto (nº de ordem 78 no inventário da coleção dos híbridos por eles conseguidos entre os anos de 1880 e 1887); e somaram-lhe ainda outras novas videiras, igualmente por cruzamento entre a americana Vitis rupestris e certas castas do Douro, entre as quais destacamos a Touriga (Rupestris x Touriga, nº 62 do inventário no dito ano de 1882).
Infelizmente, também destas se lhes esfumou o rasto, assim como se desconhece(m) o(s) cúmplice(s) no Douro de Millardet e Grasset. Descarto, porém, que se tenha tratado de António Batalha Reis ou de Duarte de Oliveira.
António Batalha Reis, na missão oficial a França em 1890, apenas constatou que no campo de ensaios da Escola Prática de Ecully (Rhône), de que era diretor Mr. Puillat, o Mourisco x Rupestris estava fraco, sem explicar a origem do híbrido. Por algum motivo — deve, inclusive, admitir-se um lapso que lhe poderá ter passado despercebido —, formulou a Mourisco como o progenitor feminino. Esse papel é-lhe normalmente adequado em cruzamentos intencionais e, nestes casos, aproveita-se-lhe a facilidade de se lhe castrarem as flores imperfeitas. Sei-o por uma experiência que vivi em 1983, quando constituí, com José Carlos Loureiro, a equipa que procedeu in vivo ao cruzamento de Mourisco com outras castas do Douro, com o fim de se lhe encontrar o melhor dador de pólen. Respondíamos então ao desejo, senão doce inquietação, de Miguel Côrte-Real, dinâmico viticólogo da Cockburn’s; e orientou-nos, passo a passo, Nuno Magalhães, o nosso professor de viticultura na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Nem de propósito: naquele ano, a Tinta Barroca — outra casta resultante do cruzamento entre Mourisco Tinto e Touriga (Nacional) — revelou-se a melhor dadora, de entre um lote em que também se experimentavam para o mesmo efeito as duas Tourigas, Nacional e Francesa, a Tinta Roriz e a Malvasia Preta.
Um acontecimento remata, de forma a mais inquestionável, a gratidão de Portugal à escola hibridista francesa: em 1893, e por influência de António Batalha Reis, o rei D. Carlos agraciaria com o grau de Comendador da Ordem de Cristo os hibridistas franceses Alexis Millardet e Georges Couderc. Descobri-o ao responder ao pedido de Madeleine-Averelle Couderc (neta de Georges e, entretanto, falecida) e do marido, François Morisson-Couderc, nos dias em que estes se dedicavam a escrever a biografia do seu antepassado.
Alfredo Allen e Albino de Souza Rebello ombrearam com Duarte de Oliveira no aproveitamento da resistência da Mourisco ao inseto devastador, em favor de uma nova viticultura pós-filoxera. Exploraram-lhe esta capacidade distintiva, que Duarte de Oliveira reavivou aos leitores da edição de 3 de maio de 1910 do diário O Comércio do Porto: «Os que nos lêem certamente que não se recordam disto; mas, aí por 1872, escrevíamos, nas gazetas agrícolas, que o Mourisco Tinto era de todos os postos do Douro aquele que mais resistência oferecia ao Phylloxera vastatrix». Conhecia-lhe, inclusive, a inferioridade: «Não há, porém, bela sem senão. Tem um defeito: em consequência da disposição dos seus órgãos sexuais (estames), desavinha muito, ou, noutros termos, tornando-se difícil a sua fecundação, as flores abortam». Contracorrente, declarava a casta numa conta à parte: «É a mais distinta uva de mesa que se cultiva em Portugal e que faz inveja às melhores que são conhecidas no estrangeiro». Note-se que, por este elogio exagerado quanto ao fim comercial da uva, lhe diminuía o interesse enológico. Este, na verdade, veio a esmorecer no termo do século passado, uma vez que a descendência lhe ganhou vantagem; para nomear apenas algumas das herdeiras: Touriga Francesa, Tinta Barroca, ou Tinta da Barca. Vale, porém, a ironia: foi [Uma imagem com fruta, uva, Fruta sem semente, folhas de videira Descrição gerada automaticamente] precisamente o desinteresse enológico da Mourisco que lhe preservou o nome, depois de recentemente o terem apagado da lista de castas do Douro. De outra maneira, venceriam aqueles que correm a chamar-lhe Marufo — a designação exclusiva de prisioneira que lhe deram, sem consentir qualquer sinonímia, nem mesmo a de Mourisco Tinto, porventura receosos de que esta denunciasse o desaforo no rebatismo e facilitasse reaver o bom nome da casta.
Desde que lhe foi atribuído um papel principal no renascimento das vinhas filoxeradas, a casta seguiu três caminhos, que, num ou noutro ponto, se cruzaram em proveito mútuo. Aponto-os de seguida — mas não sem antes, num meio-tempo, propor que se recue a 1901 e se leia na Ampélographie dirigida por P. Viala e V. Vermorel (Tomo II, pp. 303 a 305) a resenha da casta, da responsabilidade de Duarte de Oliveira. Aprecie-se ainda a belíssima gravura que a enfeita. É certo a leitura animar o seu resgate.
Eis, então, os caminhos seguidos no ressurgimento da viticultura pós-filoxera através da Mourisco do Douro:
1.° A sementeira das suas grainhas na obtenção de videiras mais resistentes ao inseto, sem, contudo, qualquer evidência de um progenitor masculino premeditado. Foi por essa via que se obtiveram novas variedades genericamente conhecidas por «Mourisco-de-semente», que os mais otimistas almejavam com capacidade de vingar como produtores diretos. Continuam por aí múltiplos destes genótipos por desvendar, pois deles somente se deduz o progenitor feminino. A videira de Mourisco-de-semente identificada na Quinta do Cruzeiro, em Vale de Mendiz, que mencionei atrás, é um bom exemplo. Mas há outros. A competente — e afabilíssima — equipa de geneticistas da UTAD está a descobri-los.
2.° A hibridação intencional com Mourisco em estreita colaboração com a escola hibridista francesa. Perdeu-se, todavia, o rasto destas videiras, quer em Portugal quer em França.
Além do enigmático Mourisco x Rupestris testemunhado por António Batalha Reis no campo de ensaios da Escola Prática de Ecully, descobri dois híbridos: aquele obtido por Alexis Millardet (Rupestris x Mourisco) e o de V. Malégue (3103 Couderc x Herbemont vinifera x Mourisco), este último a partir de pólen que lhe fora enviado de Portugal por Duarte de Oliveira.
3.° Um caminho surpreendente que, uma vez aclarado, há de explicar as castas pós-filoxera, resultado do cruzamento mágico entre Mourisco Tinto e Touriga (Nacional). Dele sobressaíram a maestrina Touriga Francesa — acima de qualquer outra executante exemplar, tendo mesmo, no pós-filoxera, destronado a inadaptada Bastardo nas melhores encostas para Vinho do Porto — e a Tinta da Barca, obtida por Albino de Souza Rebello, de quem tenho vindo a reunir pacientemente notas biográficas. A última descobre-o na lista de viticultores do Douro que, em Março de 1881, receberam grainhas de videiras americanas para sementeira de porta-enxertos indemnes ao inseto, as quais foram distribuídas na Régua pela Comissão Central da Phylloxera.
Um dia deduzi da observação das folhas da videira de Tinta Aguiar a forte possibilidade de se tratar de outra Mourisco bastardo — com uma singularidade: os bagos esféricos podem apertar-se entre os dedos polegar e indicador com a mesma força com que se apertam autênticos berlindes. Depois que se confirmou ter a Tinta Aguiar igualmente resultado daquele cruzamento mágico, ocorreu-me uma pergunta: ao invés dos indistintos Mouriscos-de-semente, somente a descendência de Mourisco cruzado com Touriga (Nacional) se evidenciou e, por isso, recebeu um nome próprio? Ademais, soubemos distinguir a Touriga com o epíteto de «Nacional» e, desta maneira, acarinhá-la e continuar a dá-la ao mundo: uma casta do Douro.
Posto isto, quem ficará indiferente ao resgate da Mourisco Tinto? Uma casta autóctone, anterior ao estabelecimento em 1756 da Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro, e símbolo do património vitícola preservado e enriquecido com a demarcação consequente da região vinhateira — até neste século lhe apagarem o nome com que nasceu, como se lhe não bastassem a imperfeição botânica que a impede de vingar em vinhas estremes, ou o desinteresse enológico em que resiste.
Urge formar uma equipa de resgate coesa.
Faz-nos falta Álvaro Moreira da Fonseca. Mas não só. Se também ainda fosse vivo, o barão de Forrester apoiar-nos-ia com uma carta panfletária, intitulada ao seu jeito: «Nova e Justa Vindicação da Lavoura Duriense: O Resgate da Casta Mourisco Tinto».
António José T. Magalhães, duriense e viticólogo