Arriscando simplificar leituras mais complexas, diria que, nos nossos dias, é possível identificar três grandes posicionamentos relativamente quer à delimitação das funções sociais do património cultural quer à relação do mesmo com temáticas particularmente difíceis tratadas pela historiografia e por outras ciências sociais. Face, por um lado, à conjuntura de crise estrutural e global que atravessamos; por outro lado, à centralidade do património cultural enquanto tecnologia de governança de memórias, identidades e representações, considero tratar-se de uma questão importante tanto em termos de desempenho profissional como de vivência cívica.
Segundo os defensores, antigos e atuais, de uma visão tradicional de património cultural (derivada do paradigma moderno), as categorias de zonas monumentais, de monumentos e de estruturas ou de objetos expostos em museus devem ser reservadas a vestígios da evolução de cada comunidade nacional que apresentem, em simultâneo, as seguintes características: originalidade e qualidade estética excepcionais, contribuição significativa para a “grandeza nacional” e para a “superioridade civilizacional”, natureza consensual e não polémica. Tendencialmente, da aplicação dos referidos critérios decorre a seleção, apenas, de materialidades associadas tanto às elites dominantes — arte e religiosidades eruditas, pessoas e símbolos de poder — como a exotizados segmentos de populações periféricas (“arcaicos” internos e “primitivos” externos).
Na perspectiva dos proponentes do novo património cultural (vinculado ao paradigma neomoderno), os bens patrimoniais de cariz cultural — materiais e imateriais — visam salvaguardar a memória de, divulgar conhecimento sobre e promover a apropriação crítica de leituras acerca de múltiplos segmentos da realidade considerados representativos das permanências e da evolução das sociedades humanas nos seus diversos âmbitos e escalas. As políticas de património cultural devem, pois, ser pluralistas e inclusivas; pressupõem um esforço contínuo de objectivação; dependem de um debate permanente, ao mesmo tempo aberto e rigoroso, que vise alcançar mínimos denominadores comuns fundamentadores das escolhas feitas.
De acordo com os arautos do paradigma pós-moderno, ou não faria sentido as sociedades humanas estruturarem políticas de património cultural (inevitavelmente artificiais e legitimadoras de determinadas elites) ou o património cultural teria de assumir a configuração de memoriais nos quais se lembra o exemplo das vítimas e se condenam os perpetradores das mais significativas formas de desigualdade, de discriminação e de violência de massas ou de genocídio. Para que o referido propósito seja operatoriamente trabalhado, os discursos ou narrativas adoptados só poderiam revelar-se valorativos e maniqueístas, unilaterais e redutores.
Manifesto a minha preferência pelas concepções do novo património cultural e pelos fundamentos do paradigma neomoderno por razões de natureza epistemológico-teórica e cívico-deontológica. Sendo o património cultural uma tecnologia de base científica, derivada da historiografia e de outras ciências sociais bem como das humanidades, penso que deve ser utilizada quer para consolidar e aprofundar regimes democráticos e relações internacionais multilaterais, quer para promover desenvolvimento integrado — em termos sociais e territoriais — e sustentável, ou seja, não destruidor mas fomentador das condições que, também no médio e no longo prazos, permitem a melhoria das condições de vida de todos os indivíduos.
Para que tal aconteça, deve o património cultural divulgar, tão eficaz, diversificada e amplamente quanto possível, conhecimento objetivante (de caracterização e análise, pluralista mas recusando revisionismos e negacionismos) sobre o máximo possível de facetas da realidade, incluindo, por um lado, as modalidades de desigualdade, de discriminação e de violência de massas ou de genocídio; por outro, as respectivas resistências, oposições e alternativas. Deve, ainda, o património cultural ser sistematicamente correlacionado com a produção artística do tempo presente, com a cultura organizacional e com a diferenciação territorial, com o urbanismo e com a arquitectura, com o lazer e com o turismo de património cultural, etc.
Avalio como insuficiente ou muito insuficiente o investimento — quantitativo e qualitativo — que, mesmo nos últimos anos, os sistemas políticos/os aparelhos de Estado e as sociedades civis de Portugal e do Brasil têm feito, direta e indiretamente, em património cultural. O diagnóstico é mais dramático se focarmos a atenção em bens patrimoniais de cariz cultural ligados as modalidades de desigualdade, de discriminação e de violência de massas ou de genocídio. Portugal não criou ainda, nomeadamente, museus sobre expansão e colonialismo; escravatura e trabalho forçado; antijudaísmo/anti-semitismo e Tribunal do Santo Ofício da Inquisição; pobreza e práticas de apoio social, doenças e práticas de saúde, natalidade e mortalidade; vivências culturais, condições de vida e hábitos alimentares; estatuto jurídico e situação social das mulheres; migrantes internos, emigrantes e imigrantes, exilados e refugiados; religiosidades, agnosticismo e ateísmo, laicidade; sexos, identidades de género, vivências da sexualidade e violência sexual; resultados e “efeitos colaterais” das tecnologias de base científica.
Concluo invocando o exemplo de um projeto museológico que, apesar de não resultar da iniciativa de uma entidade pública, por um lado corresponde aos pressupostos da nova museologia; por outro lado, aborda, de forma bastante objectivante e pluralista, um conjunto de problemáticas que incluem a referência a modalidades de desigualdade, de discriminação e de violência de massas ou de genocídio. O respectivo objecto são os indivíduos de origem judaica que, desde o século XVI até aos nossos dias, viveram ou vivem no Brasil: judeus, cristãos-novos e marranos; cidadãos, exilados e refugiados, migrantes, imigrantes e emigrantes; na diáspora e tendo em conta a criação do Estado de Israel; oriundos de diversos países ou territórios não-autónomos e com múltiplas posturas face à cultura e à religião judaicas.
Trata-se do Museu Judaico de São Paulo, instalado no edifício anteriormente construído para albergar a Sinagoga Beth-El. Depois da diretoria de inauguração, a governança da instituição é assegurada por um conselho deliberativo, uma diretoria executiva e um conselho consultivo. Partindo da investigação em historiografia, noutras ciências sociais e em humanidades, resulta do cruzamento das características de um museu de sítio, de um museu temático e de um centro de interpretação; inclui duas exposições de longa duração (A vida judaica e Judeus no Brasil: histórias trançadas), exposições temporárias e uma biblioteca/centro de documentação; aborda explicitamente as questões, no Mundo e no Brasil, do anti-semitismo — moderado ou radical — e, no contexto da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto; estabelece ligações a outras formas de desigualdade, discriminação e violência de massas ou de genocídio.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico