O próprio da queda ou do mergulho no abismo é a sideração. O tempo fica suspenso e parece infinito e, enquanto caímos, só pensamos em quando e como é que isto vai parar e, em seguida, em que estado ficaremos depois da aterragem. Como será bater no fundo? O que me espera? Este estado de apneia emocional e intelectual dificulta, talvez impossibilite até, a nossa capacidade de respirar para refletir, para produzir um discurso inteligível e agir. Estamos num estado de alerta maximal e de sensação de extrema impotência, é um caso de “vida ou de morte”.
Ao escrever estas linhas, vem-me à memória uma das cenas mais marcantes do cinema francês: a cena da queda no filme Odiar (1995), realizado por Mathieu Kassovitzum filme que é ainda hoje uma referência sobre a condição de vida da juventude nos bairros suburbanos vítima do racismo e da repressão do Estado através, por exemplo, da violência policial. Desde a cena inicial, ouvimos em narração: “É a história de um homem que cai de um prédio de 50 andares. À medida que ele cai, repete constantemente para se tranquilizar: até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem. Mas o importante não é a queda, é a aterragem.”
No fim do filme, a frase volta, mas a palavra “homem” é substituída pela palavra “sociedade”. Pequeno aparte, a cena da queda em si não existe, não foi filmada, mas a descrição e a repetição da expressão “Até agora tudo bem” são tão marcantes que ficamos com a memória visual de uma cena inexistente. Tendo falado com várias pessoas que viram o filme, foi surpreendente constatar que sofremos de uma espécie de alucinação coletiva que dura há quase 30 anos para quem só viu o filme quando se estreou.
Esta é uma história dramática, de quase negação da inevitabilidade do pior, de autoconsolo. Como estar bem no presente quando se sabe que no futuro quase imediato tudo estará mal. Ninguém sobrevive a uma queda de 50 andares. Enquanto pensamos que “até aqui está tudo bem”, que o pior ainda não chegou, enquanto acreditamos numa calma ilusória, numa paz podre, não podemos (re)agir. Mas como proceder face ao inevitável? Vale a pena? Não será melhor ficar neste estado de otimismo consolador e aproveitar os últimos instantes?
A realizadora Alice Diop descreve também um estado de sideração numa grande entrevista sobre a situação em França, as eleições legislativas e a extrema-direita às portas do poder, dada ontem ao jornal Liberar. O diário escolheu-a para ser capa do jornal e acompanha a sua foto com o seguinte excerto da entrevista: “Para as pessoas como eu, é a vida ou a morte.” O “como eu” é ser uma mulher negra francesa, nascida em França, filha de mãe e pai senegaleses, que vive num bairro suburbano, que é artista e luta no seu trabalho e no seu ativismo contra o racismo. Alice Diop fala do seu estado de tetania após o resultado das eleições europeias em França e descreve até um momento de vertigem no dia anterior em que se sentiu mal no metro e relata que, nas urgências, o médico reconfortou-a, dizendo que não tem nenhum problema físico, mas que o seu corpo parece ter reagido a uma ameaça iminente. Alice Diop conta que o médico lhe perguntou depois se andava preocupada com alguma coisa e ela diz que esteve quase para responder: “E para si, está tudo bem? Não há nada que o inquiete?”
Apesar da queda e da sensação de quase inevitabilidade de uma má aterragem, a realizadora diz ter conseguido sair do estado de tetania graças à sua participação num coletivo, “Nous On Vote”, para convencer a população dos bairros suburbanos a votar. Alice Diop é só um dos exemplos de pessoas que não têm o privilégio de cair no desespero, ou numa espécie de autoconsolo ilusório, encontrando a força no combate coletivo. Até aqui não está tudo bem e não estará depois, mas só poderá melhorar através da resistência, da ação conjunta, tal como fez quem nos precedeu. Esta é uma queda da qual só nos poderemos levantar, não temos outra via. Estamos presentes em luta pelo futuro.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico