Lançou a costumeira discussão, assim que foi apresentada pelo Governo anterior, em Maio de 2023, de tal forma amedrontando os seus autores que foi prontamente recortada nalgumas das suas propostas logo em Conselho de Ministros. Aprovada no Parlamento em Setembro desse ano e baixando à Comissão de Saúde, a chamada “Lei do Tabaco” ficou longos meses a marinar até que a queda do Governo precipitou a aprovação, à pressa, da única parte a que era obrigada por prazo limite – a transposição da diretiva europeia equiparando o tabaco aquecido ao cigarro convencional.
No entanto, a proposta legislativa da anterior secretária de Estado da Promoção da Saúde era bastante equilibrada e procurava recolocar Portugal no grupo dos países mais avançados em políticas de prevenção e controlo de tabagismo. Primeiro que tudo, tratava-se de medidas baseadas em ciência e já demonstradas noutros países – maiores restrições a fumar ao ar livre e redução das zonas para fumadores, incluindo: proibição nos perímetros dos estabelecimentos de saúde, de ensino, desportivos ou estações de transportes públicos; proibição da venda de tabaco na generalidade dos locais onde é proibido fumar, ou a menos de 300 metros de estabelecimentos de ensino; proibição de novos espaços para fumadores e eliminação dos mesmos a partir dos 2030. O Governo assumiu mesmo como desígnio a criação de uma geração livre de tabaco a partir de 2040.
Na Assembleia da República, a 24 de Outubro, a única entidade ouvida pela Comissão de Saúde é a Tabaqueira, subsidiária da Philip Morris Internacionala única que tem um conflito de interesses irremediável, a representante de uma indústria mortífera com um historial pouco recomendável de negação da evidência científica. As sociedades científicas e ONG da saúde, maçadoras, mas unânimes na sua intransigência do direito à saúde e a proteger os cidadãos, baseadas na melhor ciência, não foram ouvidas.
Lembre-se que a Convenção-Quadro da OMS para o Controlo do Tabaco, de que Portugal é signatário há duas décadas, especifica no seu artigo 5.3 que os Estados devem proteger as políticas de saúde pública da influência e interesses da indústria do tabaco, regra que o Parlamento finge ignorar sistematicamente.
Como escreveria mais tarde o Jornal de Notícias“a lei do tabaco queimou-se em dois meses”. O que acabo de descrever parece a cronologia de uma morte anunciada, devidamente agitada por meia dúzia de cronistas inflamados, que clamaram nos púlpitos dos meios de comunicação a alegada “polémica” sobre o direito individual, as liberdades sagradas, e as “lérias sanitárias” dos defensores da saúde pública.
Esquecem-se os cronistas, ou desconhecem, que as restrições ao tabaco são amplamente favorecidas pela generalidade dos cidadãos, incluindo os fumadores; que é muito discutível creditar a defesa da liberdade individual quando tratamos de uma adição terrível, que altera o cérebro dos adolescentes que iniciam o contacto com a nicotina de forma irreversível e para toda a vida; que o interesse da indústria do tabaco pela liberdade ou pela saúde dos seus consumidores é zero, querendo apenas diversificar a sua carteira de produtos aditivos, agora mais sofisticados, para ganhar novos consumidores e lucros – astronómicos. E que desnormalizar o tabaco e as suas novas, reluzentes e enganadoras formas é um modo eficaz de evitar a iniciação, porque é mesmo disso que falamos.
Recentemente, o Parlamento britânico aprovou facilmente a proposta do primeiro-ministro Sunak para a proibição de venda de tabaco e cigarros electrónicos às gerações nascidas depois de 2009, criando de forma inteligente uma primeira geração de não fumadores, sem proibir o consumo. A proposta é apoiada por uma grande fatia dos cidadãos, havendo mesmo 30% favoráveis a um banimento total. E foca novamente o cerne da questão: o tabagismo e a epidemia da nicotina são uma doença pediátrica. Se evitarmos o seu início, evitamos na larga maioria a multidão de consumidores adictos e futuros doentes.
Senhores legisladores, senhora ministra, não deixem morrer as alterações à lei e relembrem-se que alargar as restrições à venda, distribuição e consumo de produtos de tabaco é uma medida bem demonstrada e eficaz, como o são o aumento do preço e a proibição efectiva de toda a promoção e publicidade, mesmo aquela que livremente circula nas redes sociais, nos festivais de música, nos influenciadores, nos telemóveis de todos os adolescentes.
Não se esqueçam, também, que os fumadores são doentes e merecem acesso a um tratamento eficaz em consultas de cessação tabágica, sempre subnutridas pelo Estado, e a medicamentos comparticipados ou subsidiados.
Proteger os cidadãos, os jovens e as crianças de iniciarem a dependência da nicotina, que os acompanhará toda a vida, é um exercício de liberdade e de boa governação. Exerçam-no, pois, sem medo.