São quase dez da noite, noite cerrada. Descemos a escadaria às apalpadelas, que está chuviscoso e o caminho facilmente pode transformar-se numa rampa de lançamento para o mar, lá em baixo. Afinal, estamos em caminho e lugar históricos, de subidas e descidas da história baleeira e marinheira (e não só) do Faial. É no Porto Baleeiro do Salão, transformado em pista de lançamento e com um certo ambiente festivo de discoteca trilhaque umas dezenas de atletas especiais aguardam o início da primeira prova da Ultra Blue Island by Azores Trail Run. Esta é mesmo ultra, a maior, a da Grande Rota dos Baleeiros. São 118km, noite e dia, para muitos serão mais de quinze horas a correr, dezasseis, dezassete, dezoito…
Sente-se no ar um nervoso miudinho que vai em crescendo. Respira-se fundo, cruzam-se as mãos, dá-se o último retoque às sapatilhas e vestuário, ajeita-se a lanterna na cabeça. À volta, enquanto faíscam as luzes e os flashes, são muitos os espectadores. Talvez, como nós, divididos nessa sensação de por um lado querermos juntar-nos a eles, por outro suspirarmos de descanso por não estarmos prestes a tentar correr mais de uma centena de quilómetros pela ilha. A subir, a descer, a serpentear, de olhos no mar ou embrenhados na floresta, a mergulhar na escuridão ou a derrapar ao amanhecer, a suar às estopinhas seguindo dos sinais. Mal sabem eles e nós que daqui a pouco cairá uma carga de água que só visto e ouvido – de breve duração, mas ainda assim… Batem as dez, senhoras e senhores, a batida sente-se por todo o lado, “Focus, Let your energy flow, This is your moment, Feel the force of the island, Are you ready?” – a voz incentivadora é forte, profunda, trovejante. “Are you ready?”. Estamos. “RUNNNNN”.
E aí vão eles. Primeiro devagarinho a subir, depois a desaparecerem na noite. São só 118km. Mas, calma, há mais provas a começarem daqui a umas horas e em outros pontos da ilha. É ao gosto do atleta: 65km (Blue Island, uma média de 14h) antes do nascer do sol, depois Costa a Costa (42km), Dez Vulcões (25km) e as mais acessíveis corridas em família (10km) e para os mais pequenos (1,6km).
Ao meu lado, numa calma aparente, está Mário Leal, 50 anos, geógrafo e inspector do ambiente, no caso e principalmente, co-fundador da Azores Trail Run. “Nervoso?”, pergunto. “Agora? Nada. Agora é deixar correr e que corra tudo bem”. Afinal, a maratona do Mário é cada ano até isto tudo começar. A corrida começou em 2012, com 15 atletas. Dois anos depois, o primeiro evento a sério atraiu duas centenas. Foi em crescendo, com a pandemia a baralhar as contas, mas com esta também a originar um “grande evento marcante” – a segurança da ilha permitiu recebeu atletas de elite, em evento da influente marca desportiva Salomon, e depois até a final mundial patrocinada pela marca (Golden Trail National), com os melhores do mundo e direito a divulgação mundial. Da ilha e da Azores Trail Run, que entretanto abriu as asas para outras ilhas dos Açores. No Ultra Azul Island, este ano (3 e 4 de Maio), “tivemos mais de 600 atletas de 44 nacionalidades”, indica Mário.
O impacte do evento é evidente, além de encher a ilha no fim-de-semana em que se realiza, da hotelaria à restauração – até porque muitos participantes aproveitam para férias, a família acompanha. “Muita gente depois faz o boca a boca, volta noutras alturas, traz amigos”. E claro que os trilhos, entre os históricos e outros desbravados, estão por ali o ano todo, para clonar o trail em gps ou para caminhar. Para lá da fama nacional e internacional, o evento conquistou um Prémio Nacional de Turismo, como produto Inovador, no ano passado. Impacte económico calculado, notoriedade à parte: cerca de 3,2 milhões de euros para a ilha e de cinco milhões para o arquipélago.
“Quando começamos, as pessoas perguntavam-se ‘quem são estes maluquinhos a correr de um lado para o outro”, lembra Mário. Mas, agora, muito pelo contrário, até porque são necessárias centenas de pessoas para pôr isto tudo em marcha e acompanhar todo o evento (até porque há várias estações de apoio pelos percursos, com comida e bebida e palavras de carinho) e de mais umas centenas envolvidas directa ou indirectamente na indústria da hospitalidade e não só.
Havemos de vê-los a correr pelas estradas, por caminhos de água, de lama, por entre as vacas e imersos na floresta, na escuridão e na luz, a subir e descer trilhos árduos, a serem recebidos em festa nas metas, a serem incentivados por residentes ou pelos escuteiros com as suas cornetas e bons pulmões, a correrem pelo topo da icónica Caldeira, ao ritmo das nuvens. Cada vez que um passa por nós, não resistimos a um “força!” e à troca de um sorriso e um aceno. Nem nós, nem ninguém. Há uma energia contagiante que se mescla com a energia da ilha.
Na tarde de sábado, começam a chegar os campeões. De uma forma surpreendente, e isto “porque é raro uma mulher vencer estas provas”: a grande vencedora é a italiana Enrica Dematteis, 40 anos, e fez os 118km do Ultra-Trail em 15h29’14; logo seguida, outra curiosidade, da irmã (gémea, assinale-se), Luisa Dematteis. “O que custou mais foi não parar mais vezes para admirar as paisagens, essas sim de tirar o fôlego”, dir-me-ia Enrica. E como é com o sono, o cansaço: “Estou habituada à noite, sou enfermeira”… Sobre a vitória ser feminina, sublinha que realmente não é tão comum “quanto gostaria”, mas não tem dúvidas: “É o futuro. Para estes desportos de fadiga, as mulheres são muito boas. É que estão habituadas a sofrer, têm mais resistência”. O primeiro homem a chegar foi Rogério Pronto: o português demorou mais uns 10 minutos (15h39’01).
“Durante a noite era um bocado à sorte e é perigoso, há que saber o que se anda a fazer, imagina as partes a descer… sem boa visibilidade podemos espalhar-nos facilmente”, diz-me Amaro Teixeira, 34 anos, que acaba de correr dezassete horas e meia (17h29’16”). Suadinho, delgadíssmo, não lhe falta músculo nas pernas cansadas, nascidas no Faial mas que têm feito vida pelo continente, com a Covilhã como centro. Enquanto come, este profissional de vários trilhas capaz de correr 300km de seguida, e que curiosamente também trabalha à noite, dá bons conselhos: “na gestão do cansaço, tem que se ter calma, a prova é muito longa, se o corpo vai abaixo, não volta acima”.
Ó trilha – que conta para a federação nacional e pode dar acesso à Western States 100-Mile Endurance Run, prova histórica da modalidade na Califórnia com os seus 160km -, atrai profissionais, mas também muitos amadores e turistas das corridas. “Estava em Lisboa e descobri esta prova, vi as imagens, pensei ‘Quero fazer isto’”, diz-me Sydney Chinchanachokchai, radiante por ter terminado os 25km dos Dez Vulcões por esta “paisagem maravilhosa”, embora lamente a área do vulcão dos Capelinhos ter saído do mapa devido à previsão de mau tempo. É dos EUA, mas, curiosamente, professora e investigadora media durante uma temporada em Portugal. Há outro motivo para a sua diversão: soube que um dos seus companheiros ao longo da corrida é uma estrela, “mesmo” – confirmei-lhe eu, levando à obrigatória fotografia.
“E agora a cortar a meta, Ivo Canelas”, anunciava o apresentador da corrida. “Não é esse, é o outro” – ouviram-se risos. Por acaso, é mesmo esse, Ivo, o actor. Só que veio “anónimo”, enlameado mas “feliz”. “Foi muito bom, é um trilho absolutamente maravilhoso, quando entrámos no bosque fica um escuro incrível”, diz-me Ivo, que gosta de fazer provas assim, mas de quilometragem com conta peso e medida. “Um bocadinho de esforço, um bocadinho de prazer”, sorri. Agora já com a certeza de que é mesmo o tal Ivo Canelas, assim que se afasta o jornalista não faltam fãs e fotos, por mais “anónimo”.
Mas, fã da prova do Faial, como Miguel Judas não há. “Disseram-me que sou o participante de fora da ilha que mais vezes já veio cá correr”, sorri. Já correu aqui nove edições, “pelo cenário, as pessoas daqui, tenho já cá muitos amigos, pelo ambiente antes, durante e depois”, diz-me com um gesto para o que se passa à nossa volta. Pelas mesas do parque florestal do Capelo, provas quase todas terminadas, equipas inteiras descansam, mudam de roupa, comem e bebem, riem-se, trocam histórias, partilham uma cerveja, como eu e o Miguel. Somos colegas do jornalismo, até de viagens, com ele a destacar-se por ser um corredor de primeira, habituado a maratonas destas (agora, correu aqui precisamente os 42km Costa a Costa, cruzando toda a ilha em 5h23’36). “Mas esta do Faial tem um lugarzinho especial no meu coração”. Há-de voltar para a décima corrida.
Pelo parque-meta, o ambiente é de festa. “Agora começamos já a preparar a próxima!”, garantir-me-á Mário Leal. De vez em quando, porem, mais trilhasgrandes e pequenos: “Também damos uma ajuda a preparar alguns eventos locais, aqui de freguesias que querem organizar provas, como parte das festas ou para recolher fundos”.
Na senda de corridas que “unem o turismo, a cultura e a história, a sustentabilidade, a comunidade local”, a Azores Trail Run, que se assume como “organização sem fins lucrativos” e que conta com apoios do Governo regional, Turismo e municípios, vai trabalhando para também fazer crescer a economia local, com os eventos a realizarem-se em época baixa, “promovendo o Faial e os Açores” como destinos, incluindo de primeira linha para provas de natureza e desporto. Salientando que estes eventos são “já pilares da ilha”, Mário não tem dúvidas: “o futuro do Faial é o turismo sustentável” e esse futuro passa (também) por aqui, a correr.
Já em Outubro (25 a 27), chega a Aventura do Triângulo, ou Aventura Triânguloprova plural que leva os participantes a correrem pelo Faial, Pico e São Jorge.
Quanto à Ultra Blue Island, é ganhar coragem e treinar bem: já abriu inscrições para 2025 (2-4 de Maio). Força nas pernas, que esta ilha até dá energia.